Reprodução na íntegra de reportagem publicada dia 23 de outubro de 2005, no jornal TODODIA, de Americana
Depoimentos agravam as denúncias do caso Shell
Ex-funcionários dizem que há indícios de que contaminação é antiga
Paulo San Martin – Região
Uma série de depoimentos sigilosos prestados ao Ministério Público do Trabalho, em Campinas, por ex-funcionários da fábrica da Shell Química e da Basf, que funcionava no bairro Recanto dos Pássaros, em Paulínia, traz uma profusão de indícios de que a direção da fábrica ocultou deliberadamente, por muito tempo, as condições de contaminação do ar, do solo e da água da região, colocando em risco não só a saúde dos trabalhadores e dos moradores de áreas vizinhas, mas também milhares de pessoas que utilizam as águas do Rio Atibaia para o consumo.
Segundo depoentes, algumas práticas sistemáticas descumpriam as normas mínimas de segurança exigidas para o manuseio das substâncias altamente tóxicas utilizadas na fábrica, e eram ocultadas durante as fiscalizações periódicas realizadas pelo Ministério do Trabalho e por órgãos ambientais. “Há evidências suficientes aqui para que se reabra completamente a história do chamado Caso Shell”, avalia o advogado Mário Ferreira Júnior, que conduz na Justiça mais de cem ações de indenização movidas por ex-funcionários contra as duas empresas.
Os depoimentos foram realizados ao longo dos meses de outubro e dezembro do ano passado e a maior parte deles foi mantida em sigilo por determinação dos próprios procuradores que os colheram. O objetivo dos depoimentos é realizar uma amostragem abrangente das reais condições que imperavam na fábrica, e por isso os procuradores selecionaram para depor ex-funcionários de praticamente todos os setores da empresa, da operadora de PABX ao químico responsável por algumas seções. Os depoentes têm os mais diversos níveis de instrução e informações sobre os mecanismos operacionais internos.
ÁGUA CONTAMINADA
Praticamente todos os 11 depoimentos obtidos pelo TodoDia relatam que a contaminação da água utilizada para o consumo do pessoal da fábrica já era evidente deste o início da década de 1980. A ex-funcionária Benedita Mary de Andrade, que trabalhou como operadora de telex e depois telefonista, entre 1979 e 1985, relata que todos reclamavam do cheiro e gosto da água, mas que ela “só teve mais intensa percepção” do problema no período em que ficou responsável pelo contrato do restaurante.
A água era utilizada no preparo do alimento, do café e dos sucos consumidos pelos trabalhadores. Segundo Benedita Mary, a cozinheira responsável pelo restaurante “tinha que chegar mais cedo todo dia, para abrir as torneiras da cozinha até a água clarear, pois a primeira água que saía pela manhã era preta, escura, semelhante a café”. Ela relata que objetos de metal deixados na água também adquiriam uma crosta escura e diz que vários funcionários que tentaram conversar sobre o problema com as chefias foram transferidos e demitidos, como foi o caso dela.
“A questão da água, neste caso, é fundamental, porque ela está na origem de todas as denúncias que deram início ao caso Shell”, lembra o ex-funcionário Edson Peixoto, que começou a trabalhar na fábrica com 15 anos, foi demitido em 2002, e hoje cursa o último ano de Direito e auxilia seus ex-colegas em ações judiciais de indenização movidas contra a Shell e a Basf.
Só em 1998 a Shell admitiu publicamente, por força de ação em curso no MPE (Ministério Público Estadual), que havia contaminação da água em chácaras vizinhas. “Mas, por estes depoimentos, vemos que são muitas as evidências de que a empresa sabia da contaminação há muito tempo. Isso mostra que a empresa agiu de forma dolosa e permitiu o consumo sistemático de água contaminada por trabalhadores e vizinhos”, diz Peixoto.
Vários depoimentos relatam ainda situações de acidentes com tambores de substâncias tóxicas e também de lavagem de equipamentos nos quais os produtos eram lançados diretamente na rede fluvial, no esgoto e no solo. O auxiliar de produção Antonio Baltazar dos Santos, que trabalhou na fábrica entre 1977 e 2002, relata que os “acidentes e incidentes” com produtos químicos eram freqüentes” e que, quando eles ocorriam, a limpeza era feita “com panos e mangueira d’água, com destinação final para o sistema de drenagem pluvial”.
Químico denuncia poluição do ar
A mesma relação de ocultamento que, segundo os depoimentos, ocorria com as evidências de contaminação da água também é relatada pelos ex-trabalhadores em episódios de contaminação do ar. O químico Edson Santos Silva, que trabalhou entre 1995 e 1997 na fábrica da Shell Química no bairro Recanto dos Pássaros, na formulação de produtos tóxicos como o Aldrin e Azodrin, revela que as áreas de produção tinham “uma exaustão que não era adequada, que as exaustões de todas as capelas não eram adequadas e que somente foram corrigidas” depois que a fábrica passou para o controle da Cyanamid, por volta de 1998. De acordo com ele, a falta de controle das substâncias que contaminavam o ar “propiciava a emanação de gases e vapores para todas as demais dependências” da fábrica.
Ainda segundo Silva, “os gases e vapores exauridos pelas capelas eram eliminados por dutos que iam para fora do laboratório, no teto, e liberavam diretamente para a atmosfera, sem qualquer sistema de filtros”. De acordo com depoimentos, gases exalados do laboratório iam diretamente para o restaurante e para o ambulatório, sem nenhum controle.
O Operador V da Unidade de Formulações da fábrica, Audlei José de Souza, que trabalhou de 1989 a 2002, relata em seu depoimento que a partir de 1995, diante das freqüentes reclamações de moradores vizinhos por causa do forte odor que exalava por toda a região, a direção da fábrica determinou que fossem colocadas nas saídas dos exaustores vasilhas com óleo de pinho, para mascarar o cheiro. “Tal tipo de prática perdurou até a implantação do sistema de filtros de carvão ativado, mais ou menos em 2000”, relata ele.
EMPRESA NEGA
A direção da Basf negou, em uma nota enviada para o TodoDia por intermédio de sua assessoria de imprensa, as irregularidades relatas nos depoimentos. “Estas informações não procedem, pois este não é o procedimento da Basf. A fábrica da Basf sempre operou com todas as licenças necessárias e não tem conhecimento de nenhum processo neste sentido, ou seja, de operar com irregularidades e esconder evidências durante as fiscalizações”, afirma a empresa.
A Shell, também por intermédio de sua assessoria de comunicação, enviou ao TodoDia a seguinte nota: “Com referência às questões apresentadas por essa redação a respeito de depoimentos de ex-trabalhadores, a Shell esclarece que o fórum escolhido por eles para esse assunto foi a Justiça. A Shell respeita a decisão e, a partir de então, só trata o assunto no fórum escolhido.”