No início do mês de agosto, cenas de violência mudaram a rotina de Londres, uma das cidades mais organizadas do planeta. A população se revoltou com a morte de Mark Duggan, um jovem negro de 29 anos, pai de quatro filhos, assassinado pela polícia em situação até hoje não explicada.
Ao longo dos dias, os protestos cresceram ganharam um caráter social, com a participação maciça de jovens pobres e em grande sua grande maioria desempregados revoltados com os cortes nas áreas sociais realizados pelo governo inglês.
De Londres os protestos ganharam outras cidades do país, como Birmingham e Liverpool. Automóveis e prédios foram incendiados, lojas saqueadas e centenas de pessoas presas.
Uma revolta inesperada, em um dos países mais ricos do mundo, escancara as injustiças provocadas pelas políticas neoliberais, e mostra que a crise iniciada em 2008 ainda não terminou.
No mesmo período, trabalhadores foram as ruas na Grécia e Espanha para protestar contra duras medidas de austeridade fiscal. O mesmo cenário é esperado nos próximos meses em países como Itália e Portugal.
Para completar, deputados e senadores dos Estados Unidos, berço do neoliberalismo, passaram meses discutindo se aumentariam ou não o teto da dívida americana para evitar um calote do país aos credores.
Para falar sobre o atual cenário geopolítico mundial o Jornal do Unificados entrevistou o Juiz de Direito em São Paulo e escritor Marcelo Semer. Ele é ex-presidente da Associação Juízes para a Democracia, Colunista do Terra Magazine e responsável pelo Blog Sem Juízo.
ENTREVISTA
Não abrir mão da defesa
da dignidade humana
Jornal do Unificados: A crise na Europa, as dúvidas quanto à saúde financeira dos Estados Unidos e as revoluções nos países árabes são fatos novos na situação geopolítica. Qual a importância desses acontecimentos para a sociedade mundial?
Semer: Primeiro, a constatação de que a crise está no centro do poder não é fruto dos países periféricos. O impacto por certo é maior, porque crises em países centrais costumam ser exportadas para os demais. A primeira impressão parece ser o ingresso em uma nova recessão.
No âmbito das políticas que vem sendo implementadas com o viés neoliberal, recessão vai implicar, especialmente, em corte de despesas sociais. No fundo, a crise alimentada pela ganância de instituições financeiras em multiplicar rapidamente seus lucros acaba sendo paga pelos mais pobres. Não é um sentido razoável para a revolta?
Jornal do Unificados: No caso da Europa, como não há reivindicações específicas, haveria um movimento da juventude de descrédito nas atuais instituições e modelos de sociedade, ainda não captado claramente?
Semer: Acho que há duas coisas basicamente. Uma falta de perspectivas que se funda num maciço desemprego juvenil no bairro de Tottenham, por exemplo, especialistas falam em 35% de desemprego jovem. E nas semanas que antecederam as revoltas, 75% de cortes em áreas sociais. Além disso, há certo desencanto com a representação, que os políticos não estão captando bem.
A submissão a interesses financeiros, a falta de participação real (ao mesmo tempo em que se ampliam as condições de comunicação imediata pela internet), estão deixando a representação, dos governos e das oposições em xeque. Cada vez mais o espontaneísmo tem substituído os movimentos organizados, o que as redes sociais facilitam muito. Quem não entender o que está acontecendo, vai ficar para trás.
Jornal do Unificados: Esses movimentos têm caráter estritamente econômico e de oportunidades ou podem ser considerados um desgaste da “ordem estabelecida”?
Semer: São um desgaste no sentido que colocam em xeque os valores que estão sendo priorizados, seja na distribuição de riquezas, seja nas condições de representação. Vai ser preciso reinventar a democracia, para não perdê-la.
Jornal do Unificados: A atual crise econômica pode levar ao aumento da xenofobia na Europa? Como o senhor vê a aprovação de leis em diversos países que dificultam a imigração ou endurecem as barreiras contra imigrantes ilegais?
Semer: Não há dúvida, o fato é evidente. Recessão significa menos empregos e culpa aqueles que ingressam nos países disputando empregos. Isso explica, mas não justifica, porque parte significativa das riquezas, incluindo os empregos, de países desenvolvidos, foram custeados pelo esforço e recursos dos países periféricos, seja nos momentos mais agudos de colonização (retirada pura e simples dos bens), seja nos momentos de exploração econômica.
Jornal do Unificados: A dita globalização implicou em uma relação desigual: empresas com livre acesso aos países, exportações em ascensão (mercados que se privatizam e se internacionalizam) e ao mesmo tempo muros de proteção e leis mais rigorosas para que as pessoas não possam se locomover. Muitos dos recursos africanos foram aplicados na Europa, garantindo muitos empregos, porque então imigrantes africanos devam estar proibidos de usufruí-los?
Semer: Mas não podemos deixar de lado que existe um grande reacionarismo no ar, que se segue à incorporação de direitos civis ao longo do tempo. O fascismo está brotando e parece que tanto lá como cá nós não estamos sabendo tratar com isso. Xenofobia, racismo, homofobia estão nitidamente mais intensos, ao mesmo passo que o fundamentalismo cresce. É preciso estar em atenção e não abrir mão da defesa da dignidade humana.
Jornal do Unificados: Essa é a segunda grande crise em um curto espaço de tempo. Até quando os bancos e seus enormes lucros continuarão ditando as regras do sistema econômico mundial?
Semer: Eu diria que é a continuação da crise de 2008 e justamente porque desde lá os alunos que foram reprovados continuam a dar aulas. Se o sistema financeiro provocou a crise e influencia os governos que as resolvem como imaginar que a prioridade seja o bem-estar dos indignados?
O poder do mercado se expandiu com a globalização (embora, como se vê, os riscos também) e os Estados se fragilizaram, inclusive em relação a seus investimentos estratégicos.
Para aumentar o mercado consumidor dos países em desenvolvimento, o mundo ficou mais integrado e, por consequência, mais permeável a crises globais, porque os investimentos flutuam de um lado a outro. Qual é o final dessa história ainda não sabemos, só podemos saber, enfim, que a história não terminou, como se apregoava anos atrás.