A professora Isabel dos Reis, que denunciou o racismo em sala de aula na UFRB em dezembro do ano passado, explica que o racismo estrutural brasileiro pode ser evidenciado em todas as esferas, segmentos ou setores da nossa sociedade, nas instituições e espaços públicos e privados, praticado pela maioria dos indivíduos (independentemente da sua condição socioeconômica, do seu gênero ou origem étnico racial). É um comportamento naturalizado, adquirido e reproduzido na vivência cotidiana.
“Só para exemplificar, quando eu iniciei a minha vida adulta, trabalhando em uma empresa privada, eu assisti a algumas situações em que foi dada a oportunidade de ascensão no posto de trabalho a uma pessoa por causa da sua “boa aparência”. Vale ressaltar que se tratava de pessoas com pele clara, e que por causa da sua branquitude, e não pelo critério da competência, mereceria a chance de ocupar uma colocação melhor”, conta.
Segundo ela, no racismo estrutural raramente alguém estranha, se preocupa ou se comove com o lugar desqualificado e subalterno ocupado por um afrodescendente, mesmo que ele tenha formação profissional, capacidade intelectual, habilidades ou qualquer outra competência para ocupar um posto de trabalho melhor, e que lhe permita auferir remuneração superior ou viabilizar alguma ascensão social.
“É como se fossemos invisíveis, é como se não fosse legitimo e importante melhorarmos as nossas condições materiais de vidas e das nossas famílias. E para os afrodescendentes que conseguem alguma ascensão social, ainda há a difícil convivência com aqueles que não aceitam a chefia ou liderança de um não branco”, afirma.
Como a senhora avalia o racismo estrutural no Brasil?
Ninguém neste país admite ser racista, apenas diz conhecer alguém com esse perfil; são muito poucos os brancos que cogitam a possibilidade de ter atitudes antirracista, abrindo mão de privilégios advindos da sua branquitude, ou se colocam na posição de enfrentamento e denúncia do racismo. Essas pessoas com muita frequência se colocam à parte do problema, como se o racismo fosse problema apenas dos negros. A quem interessa uma sociedade tão desigual? Por que tanta gente é contrária às políticas de inclusão a exemplo das “ações afirmativas”, de promoção da igualdade seja ela qual for? É muito difícil de compreender este comportamento tão incivilizado, antidemocrático e desumano! É repugnante ouvir essas pessoas que falam em “mimimi” quando chamamos a atenção para o racismo brasileiro de todos os dias.
Como o racismo estrutural impacta as mulheres afrodescendentes?
O racismo estrutural existente na sociedade brasileira invariavelmente dificulta o pleno processo de ascensão social e econômica das mulheres afrodescendentes, que são vitimadas não só pela opressão promovida pela discriminação racial como pelo machismo. Ser mulher e negra é uma condição altamente desfavorável aqui, e se você vem das camadas populares, situação da maioria de nós, o fardo é ainda mais pesado para carregar. O racismo está entranhado em todas as esferas da sociedade brasileira e age de forma a subestimar, não reconhecer ou inviabilizar as agências e o pleno desenvolvimento das potencialidades das mulheres negras, nos negando oportunidades de ocupar posições de destaque, liderança e poder.
A luta contra o racismo impacta mais mulheres e os LGBTI+? Por que?
É quase impossível apontar o que é pior ou menos pior ao falarmos em preconceitos e suas nefastas consequências nas vidas dos indivíduos. Porém vivemos em uma sociedade profundamente marcada não só pelo racismo como pelo machismo, uma sociedade ainda patriarcal, e muitas vezes homofóbica, entre outras discriminações repulsivas. Imagine a qualidade de vida das pessoas que, para além de serem estigmatizadas por causa da sua origem étnico racial, ainda sofrem pelo acúmulo de outros preconceitos e desigualdades? Na atualidade estamos participando de discussões muito profícuas que enfatizam, atualizam e sistematizam o acúmulo de reflexões antigas no seio dos movimentos negros brasileiros e fora daqui, sobre a relevância das ações para combater os impactos da interseccionalidade (estudo da sobreposição ou a junção de identidades sociais e sistemas relacionados de opressão, racial, de gênero e classe).
O alto número de assassinatos entre a população de jovens pobres e negros é um reflexo do racismo estrutural? Por que?
Sim! Em uma sociedade profundamente marcada pelo racismo, nós, as mulheres e homens negros somos quando muito considerados cidadãos de última categoria, quase sem direitos ou recursos para cobrá-los, uma vez que as instituições que deveriam nos defender também não nos tem em muita conta. A vida ou a qualidade de vida de um cidadão negro importa muito pouco neste país. Aqui já está naturalizada a existência precária da população afrodescendente.
Os movimentos antirracistas mundiais dão visibilidade ao privilégio de brancos?
Estes movimentos são fundamentais no processo de politização que pode levar a adesão de um número significativo de indivíduos na luta antirracista pelo mundo. Se pensarmos que situações de absurda violência como aquela da morte de George Floyd costumam acontecer entre nós, no seio das comunidades negras, vitimando sobretudo milhares de jovens negros sem a mesma comoção e repercussão, quem sabe assim a sociedade brasileira começa a olhar para si próprio e tome consciência de que o nosso problema é gigantesco e precisa do mesmo tipo de mobilização e denúncia. Quem sabe as vidas negras comecem a importar em todos os lugares, inclusive aqui.